Como o yoga chegou no Ocidente?
Nesse
primeiro texto vou abordar a primeira parte: quando o Ocidente descobre
o yoga. O professor Martins revela que os livros
ingleses do século 17 ao 19 se referiam aos ascetas (pessoas que se entregam às práticas espirituais no Oriente) como “faquir”, que na verdade é um termo para ascetas muçulmanos, enquanto os ascetas indianos eram yogis. A falta de
conhecimento da cultura oriental era tão grande que não havia condições de distinguirem diferenças.
Nessa época, ilustrações distorciam a religião hindu, comparando as cerimônias à cultos
ao demônio, como as gravuras de Bernard Picart.
Tradutores do Pensamento Indiano
As primeiras obras do pensamento indiano começaram a ser
traduzidas no século 19. Em 1785, por exemplo, o orientalista
inglês Sir Charles Wilkins traduziu pela primeira vez Bhāgavād Gitā e fez uma gramática do
sânscrito. O juiz britânico William Jones traduziu o Manusmriti, em 1796, que reúne as leis religiosas, morais e civis da época. O
professor francês Anquetil Duperron traduziu 50 Upanishads (textos religiosos
hindus), em 1801. Foi então que pensadores da época começaram a estudar essas
obras, como os filósofos Arthur Shopenhauer e Freiderich Schelling.
No século 19, missionários intensificaram estudos sobre as filosofias e
religiões indianas como forma de buscarem argumentos para a conversão dos
nativos. Em 1819, o professor Horace Hayman Wilson publicou o dicionário
sânscrito-inglês que tem o primeiro verbete sobre yoga, baseado em pesquisas e
citações do Bhāgavād Gitā e do Yoga-Sūtras de Patañjali. Nessa segunda fase, a elite
cultural europeia começa a se interessar pelo yoga. Uma coleção se destaca,
The Sacred Books of the East, com 50 volumes, coordenada pelo linguista alemão
Friedrich Max Müller e publicada entre 1879 e 1910. O referido linguista é apontado como um dos autores da teoria da invasão ariana como origem da Índia, que foi recentemente derrubada. Durante a colonização da Índia pelos britânicos
ocorre um processo de aculturação dos indianos, ao mesmo tempo em que grupos
esotéricos, como a Sociedade Teosófica, passam a misturar a filosofia indiana
com o esoterismo e o ocultismo do Ocidente. Que confusão, não é? Mas vai piorar,
segue a leitura.
Movimento Brahmo Samaj
Durante o império colonial britânico na Índia (1857-1947) a
cultura europeia foi abertamente imposta em áreas como religião, legislação,
alimentação, medicina, costumes e valores. Um exemplo, o Barão Macaulay (Thomas
Babington), membro do Conselho Supremo da Índia, estimulou o ensino da língua
inglesa e a criação de uma elite indiana. O objetivo era que os
ingleses fossem representados "em gosto, em opiniões, em moralidade e em
intelecto", segundo escreveu na Minuta sobre Educação, em 1835. A
influência foi tão grande que surgiu o movimento Brahmo Samaj (Assembleia de Brahman), que rejeitava as
antigas escrituras e divindades em defesa do cristianismo. Esse
movimento começou em Calcutá, em 1828, sob a liderança dos rajás Ram Mohan Roy
e Dwarkanath Tagore. Em 1848, Debendranath Tagore (filho de Dwarkanath),
transformou o movimento em uma religião chamada Brahmoísmo, que rejeitou todos
os rituais hindus.
Uma terceira fase do movimento, após 1860, foi liderada pelo
filósofo Keshub Chandra Sen, que passou a defender práticas cristãs. Em 1876 ele dividiu o movimento em três
categorias: Shabaks (prática de caridade), Bhaktas (devotos
religiosos) e Yogis (prática de meditação). Essa divisão
foi a base para, 20 anos depois, o guru bengali Swami Vivekananda conceituar Jñana, Karma,
Bhakti e Raja. Vivekananda participava do movimento liderado por Chandra Sen e
aderiu a uma leitura cristianizada da filosofia Vedānta. Um exemplo foi o seu conceito de Karma-Yoga “fazer o bem para os outros”, um valor
cristão diferente do exposto no Bhāgavād Gitā, onde Krishna explica que é "a ação sem
apego para alcançar o Ser Supremo". Bhakti-Yoga foi conceituado por ele
como “devoção a Deus”, ignorando a tradição dos deuses e deusas do Hinduísmo.
A influência do movimento Bhahmo Samaj foi notória e passou
a ser estudada por indianos como se fosse uma tradição antiga. Outra mudança
que causou essa revisão das tradições foi a busca por explicações médicas sobre o corpo sutil para atender as necessidades
ocidentais. Swami Hamsasvarupa, por exemplo, publicou o livro Shatchakra
Niroopan Chittra no qual identificou os cakras (chakras) com aspectos do
sistema nervoso. No final do século 19,
uma elite cultural indiana havia aderido à cultura, à religião e à ciência
ocidental misturando essas influências com ideias indianas antigas. Ficou cada
vez mais difícil encontrar a autêntica tradição religiosa e
filosófica, e também, o antigo yoga.
Ocultismo, Esoterismo e Yoga
Os movimentos ligados ao esoterismo e ocultismo buscavam todo tipo de
conhecimento mágico e espiritual de civilizações antigas. A prática de yoga
(meditação) era considerada um dos múltiplos
componentes dos estudos esotéricos. O maior movimento na época era a Sociedade
Teosófica (ST), sob liderança da escritora russa Helena Blavatsky (1831-1891) que dizia receber mensagens espirituais de mestres do conhecimento antigo. Os
teosóficos mantiveram contato com o movimento Arya Samaj (ramo do Brahmo Samaj),
sendo recebidos na Índia, em 1879, pelo Swami Dayananda. Alguns anos depois, em
1905, é fundada a sede teosófica em Madras (atual Chennai), na Índia. Nessa
época a Sociedade Teosófica passou a se interessar pelo yoga (Raja Yoga),
porque acreditava que ajudaria a despertar poderes ocultos. Até então, o Hatha Yoga
era visto apenas como um conjunto de práticas físicas. Apesar disso, a
Sociedade Teosófica promoveu a tradução de três obras antigas e importantes:
Gheraṇḍa Saṁhitā, Haṭhayoga Pradīpikā e Śiva Saṁhitā. O
curioso destaque vai para uma publicação, em 1896, no periódico The Theosophist
onde alertava que a prática de Hatha Yoga trazia riscos como insanidade, doença
e morte. A sucessora de Blavatsky à frente da ST, Annie Besant (1847-1933) procurou
estudar textos indianos fundamentais com ajuda de brâmanes. Em 1908, ela publicou
o livro An Introduction to yoga.
Ramachāraka: o falso yogui
E quem aí já leu algum livro do Yogi Ramachāraka?
Pois então, esse era o pseudônimo do escritor e ocultista norte-americano William
Walker Atkinson, que não tinha nada de yogi. Ele fazia parte do New
Thought, um movimento que desenvolveu a ideia do poder mental para
produzir cura e transformações. Os livros de Atkinson eram baseados no pouco
conhecimento que ele tinha sobre o pensamento indiano somado, em grande parte, a
ideias ocidentais. E saibam que os primeiros professores, praticantes e curiosos do yoga no Ocidente se basearam muito nos livros dele acreditando que tudo era
original. Naquela época não havia meios de checar informações tão facilmente
como hoje.
Anos 1910 a 1920
A partir do século 20, por influência do pensamento ocidental, começou a se desenvolver uma prática para garantir saúde e bem-estar, diferente da busca por moksha. Em 1919, um norte-americano chamado Pierre Bernard (Perry Arnold Baker), funda uma sociedade chamada Tantrik Order of America, adotando uma interpretação sexual do Tantra. Na mesma época pessoas sérias faziam trabalhos importantes, como o jurista Sir John Woodroffe, pseudônimo Arthur Avalo, que estudou e traduziu textos sobre Shākta Tantra, entre 1913 e 1919, entre eles Tantra of the great liberation e The Serpent Power. Enquanto isso, na Índia, Paramahamsa Madhavadasiji organizou um grupo para "atualizar" e tornar científico o Hatha Yoga, recomendando o uso de āsanas e prānāyāmas para o tratamento de problemas de saúde. Entre seus discípulos estavam Yogendra que prescrevia yoga como "terapia natural" influenciando a medicina alternativa. Ele fundou The Yoga Institute, o mais antigo centro de yoga, em 1918. Outro discípulo, Swami Kuvalayananda que praticava atletismo e lutas, fundou em 1921 o Instituto Kaivalyadhama e ajudou a transformar o yoga moderno postural. Em 1928, foi publicado o primeiro manual em inglês sobre Hatha Yoga, de autor indiano, ilustrado com fotografias: Yogic Physical Culture or the Secret of Hapiness, de Yogacarya Sundaram. Na Índia, Sundaram era um professor de ginástica e começou a utilizar āsanas para desenvolver a forma física.
O rajá Pratinidhi Pant foi o governante do Estado de Aundh, em Maharashtra, de 1909 a 1947. Ele é conhecido por popularizar a sequência de exercícios de Surya Namaskar, a "saudação ao sol". Seus livros foram publicados em inglês, hindi e telugu em 1928, com desenhos, e numa versão com fotos, em 1940. As informações que temos sobre essa prática dão conta que foi o guru do rei Shivaji Maharaj, também de Maharashtra, o sábio Samarth Ramdas que praticava Surya Namaskar, no século 17, como um exercício para desenvolver corpos mais saudáveis. No yoga moderno podemos citar o livro Sritattvanidhi como um tratado do século 19, escrito em Karnataka, que inclui instruções de 122 posturas de Hatha Yoga. Entre elas, estariam as do Surya Namaskar que influenciaram Krishnamacarya para criar o Vinyasa, juntamente com informações de um outro tratado, o Vyayama Dipika, que trazia influência de ginástica. O Surya Namaskar passou a ser fundamental no Hatha Yoga embora não seja descrito nos textos mais antigos.
Anos 1930 a 1940
O norte-americano Theos Bernard, sobrinho de Pierre Bernard, foi um dos primeiros ocidentais a estudar yoga na Índia (com Kuvalayananda). Em 1937 retornou aos EUA e escreveu livros influentes como Hindus Philosophy e Hatha Yoga: uma Técnica de Libertação. Na década de 1940, o jovem indiano Selvarajan Yesudian ensinava ginástica e āsanas na Hungria. Ele publicou livros sobre Hatha Yoga, em coautoria com a professora espiritual húngara Elisabeth Haich, que tiveram grande repercussão como Yoga and Health. Na década de 1950 esse yoga moderno é introduzido no Brasil.
CURIOSIDADE: O famoso ocultista inglês Alestey Crowley deu aulas de yoga sob o pseudônimo de Mahatma Guru Sri Paramhansa Shivaji, quando escreveu o livro Oito palestras sobre yoga, 1939. Na obra ele relaciona o yoga com o simbolismo astrológico e cabalístico.
Primeira professora de yoga na América
A russa Eugenie Peterson (1899-2002) foi discípula do "pai do yoga moderno", Tirumalai Krishnamachārya (1888-1989). Ela foi para a Índia aos 20 anos, tornando-se atriz com o nome de Indra Devi e conheceu o Rajá de Mysore, sendo apresentada a Krishnamachārya. Em 1938, ela torna-se aluna dele, ao lado de BKS Iyengar e K. Pattabhi Jois. Ela popularizou o yoga na América por meio de alunos famosos como Marilyn Monroe e Greta Garbo. Krishnamachārya foi autor do livro Yoga Makaranda (Essência do Yoga), 1934, onde descreve 42 āsanas. Ele dizia ter passado sete anos com um mestre no Tibet quando foi obrigado a memorizar escrituras chamadas Yoga Korunta, embora não haja evidências desse texto. Tratava-se, segundo ele, de um sistema de práticas incluindo prānāyāma, bandhas e drishti, com āsanas e vinyāsas, movimentos de conexão que foram popularizados pelo seu aluno Pattabhi Jois como Ashtanga Vinyasa Yoga.
Conclusão: yoga além de suas raízes
Vemos que o yoga recebeu uma grande influência do Ocidente durante o período de colonização britânica na Índia. A prática já chegou no Ocidente alterada em relação as raízes e aos fundamentos mais antigos. O objetivo já não era mais moksha - a libertação do ciclo de renascimento e morte - mas saúde e bem-estar, com comprovação pela medicina ocidental sempre que possível. Somado a isso, diferentes interpretações do esoterismo e adaptações para o cristianismo. Impossível resgatarmos e praticarmos o "yoga raiz" após tantas décadas de transformações para uma prática que carrega agora mais significados e entrega mais resultados do que se imaginava possível em sua essência.
Leia também:
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